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Seleção de crônicas e reflexões sobre fatos cotidianos 

Aqui você encontra alguns textos inéditos e outros já publicados em jornais. 

DESPEDIDAS


Dizem que as partidas naturais são mais fáceis.

Não sei. Tenho lá minhas dúvidas. Minha única certeza é que cada um interage com os sentimentos à sua maneira.

Os filhos que saem de casa. Aposentadoria, formatura, a idade. Uma doença grave que nos põe cara a cara com a finitude. Tudo lembra que, a todo instante, estamos mais distantes do que marcou um início para nos aproximar do que simboliza um fim.

Logo, o modo como percebemos os “finais” refletirá sobre as nossas despedidas.

Se tristes ou felizes, pala força da história vivida; se afogadas em dor ou “atravessadas”; se mal explicadas ou sem nenhuma explicação. Todas, sem exceção, exigem movimento. Mesmo que cristalizadas no passado pedem uma ação de quem, de alguma forma, precisa seguir seu caminho.

Toda partida sugere uma troca equivalente. Portanto, para que uma história siga seu curso, o valor exigido sempre será alto: abrir mão do que acreditamos possuir. O mercado da vida não troca uma latinha enferrujada por um pote de ouro.

A dor, apenas reforça a dura verdade de que os dilemas existenciais não aceitam terceirização. É preciso vivê-los. O apego, uma janela pela qual se pode avistar um ego que não suporta a ideia de “perder”.

Temporária ou definitiva, toda despedida abre espaço para um novo começo. Só exige que continuemos a caminhar.

Foi, justamente, “Sobre caminhar”, o título da minha primeira coluna no caderno Vida Saudável, aqui no jornal Ibiá, no dia 03/02/2017. Um momento que me causou receio.

Afinal, como partilhar espaço com excelentes escritores como: Patrícia Franz, Magnus Pilger, Pedro Stiehl, Oscar Bessi, Gerson Kauer e Márcio Reinheimer - sem nunca ter escrito uma crônica sequer? Sabia que minha pergunta só seria respondida durante o “percurso”. Precisava sair do meu conforto e aprender a caminhar por este novo caminho.

Muitos destes que citei já se despediram deste jornal. Hoje, chegou a minha vez.

Durante os últimos três anos, foram 97 crônicas. Cada uma, de certa forma, uma despedida.

É hora de encarar outros desafios, de aprofundar os estudos em Psicologia. Afinal, o caminho é longo e nunca estamos prontos. E jamais saberemos quando ou qual será a próxima despedida.

Obrigado!! Ao Ibiá, pelo espaço! À Cássia Oliveira, pelo duplo desafio: encarar meu medo de escrever e a enfrentá-lo semanalmente! À esposa Gisele, minha sempre solícita “revisora”! Um agradecimento todo especial para quem abriu mão do seu tempo para ler meus “pensamentos em forma de rascunho” (sempre são!).

Até... .

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 18.02.2020)

CIÚME


Um dos sentimentos mais difíceis de ser compreendido e trabalhado é o ciúme. Parece surgir das entranhas do corpo, brotando feito trepadeira, das profundezas da alma.

A mitologia grega conta uma interessante história. Fala sobre Hera, a deusa dos casamentos e da maternidade. Esposa do grande Zeus. Sua versão menos romântica a descreve com uma personalidade muito vaidosa, extremamente ciumenta e agressiva. Diversos passagens relatam suas crises de ciúme e as tentativas de aniquilar os filhos e as amantes de Zeus.

Tomada pelo sentimento de vingança, gera em seu ventre um filho sem pai: Hefesto. Pelo fato de ter nascido manco, ele é jogado do Olimpo.

Não há de causar nenhuma surpresa, Hera também é a representante da fidelidade conjugal.

Curiosamente, dá-se o nome de Hera à planta trepadeira. Esta, dispensa muitas explicações. Cresce e se desenvolve agarrando-se sobre outras superfícies. É um símbolo da deusa e das personalidades que necessitam de um “suporte” para se “espalhar”. Outro símbolo de Hera é a pena de pavão. Esta, tomada de “olhos”, representa o olhar onipresente.

Seguidamente, acompanho a dor daqueles que são acometidos pelo ciúme. Sejam seus portadores, ou pessoas próximas a eles. Um sentimento que, não raro, faz-se “sufocante” e “enlouquecedor”.

Trabalho com a perspectiva de que todo sentimento carregue uma verdade psíquica. Assim sendo, qual seria a verdade denunciada pelo ciúme? Penso que Hera e seus símbolos nos ajudem a refletir.

A vaidade de Hera está sempre flertando com o egoísmo. Um controle que cresce, feito trepadeira, tomando todo espaço à sua volta, sufocando e impedindo que algo nasça ao seu redor.

A verdade carregada pelo ciúme vai muito além da traição. Invariavelmente, é a literalização sintomática de algo muito mais profundo: a desconexão. Hera, a plantinha, morre sem ter onde se agarrar. Hera, a deusa, encarna todos os sintomas para não reconhecer este fato.

O único laço físico que trazemos ao chegar neste mundo é cortado no nascimento. Ou compreendemos esta verdade manifesta no ciúme, ou morremos enlaçados à dor produzida por ela.

Logo, o ciúme de Hera não fala de amor, mas de posse. Hefesto é o “remédio” não reconhecido por Hera. Abraçar as limitações da vida é quase que uma arte. Habilidade desenvolvida por Hefesto junto às forjas.

Afinal, qual a necessidade de “enlaçar” o outro? Que autoafirmação é esta que busca, feito as heras, os lugares mais altos? O que há lá, senão uma fonte na qual se bebe das próprias vaidades?

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 11.02.2020)

CINCO SEGUNDOS


O tempo estava curto. Era preciso escolher entre um banho ou comer algo.

Os dissabores do dia tornaram mais atraente a geleia de morango. Combinou perfeitamente com o bolo de milho ainda quentinho. Bastou sentir o cheiro para encher a boca d’água.

Foi a lei da gravitação que acabou com toda a magia do breve momento. Por descuido, o bolo “lança-se” ao chão. Um pensamento rápido tenta-a: juntar a única refeição das próximas horas e jogá-la à boca. Não tem coragem.

Ao chegar na faculdade, encontra algumas colegas. Saem juntas do estacionamento. É quando uma delas oferece um tira-gosto que traz junto ao chimarrão. É vencida pela afobação. O pacote que envolve a paçoca se rasga e ela cai da sua mão. Como que por instinto, agacha-se e junta o maior pedaço. Seu senso de higiene prevalece sobre a fome.

Na sala de aula, conta sobre os dois incidentes às colegas. Uma delas, sensibilizada, tira da bolsa um pacote de chocolate já aberto. Estende o braço sobre a mesa e o oferece à amiga.

Uma alegria inigualável toma-lhe o rosto. Agradece gentilmente e, como que em câmera lenta, leva-o à boca. Só não esperava que a amiga, ao recolher o braço, esbarrasse na cuia, fazendo a maior lambança. Parece não acreditar, ao ver o chocolate que levava à boca caído ao chão.

Dois segundos de perplexidade. Um de observação. Outro de um movimento extremamente rápido. Antes que o quinto segundo se complete, está saboreando aquela delícia de cacau com avelãs. Ao perceber que suas colegas a observam atônitas, sem constrangimento, esclarece:

- Lei dos cinco segundos!

Estudos, como o realizado pela Scientific American, foram a fundo na busca sobre a verdade. Testaram tudo detalhadamente: tipos de alimento, intensidade do impacto, tempo de contato, tipos de contaminantes, rugosidade das superfícies. Tudo! Todos, confirmaram que a “lei dos cinco segundos”, na verdade, não passa de um mito.

Espantosamente, oitenta e sete por cento dos participantes de uma pesquisa, afirmaram já ter se valido da regra em algum momento.

Está “no sangue”. Precisamos de mitos. Nos alimentamos deles. Principalmente, quando “famintos”. Mesmo sendo falsos, carregam a verdade que queremos. Servem para validar intenções.

O exemplo que citei, mostra que vamos nos acostumando com o que pode nos fazer mal. Vamos flertando com o perigo, até o dia que nos faça um mal irreversível.

Não é preciso nenhum estudo para concluir que, na maioria das vezes, a ignorância é muito mais letal do que uma colônia de bactérias.

Paz e Bem !

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 04.02.2020)

SAUDADE


Tem dias que a saudade aperta. Simplesmente, bate à porta. Ou, melhor, quem dera batesse. Se assim fosse, quem sabe, daria chance de escolha.

Não são raras as vezes que estou frente a quem busque a cura para a saudade. Não sei se por azar, ou sorte, a saudade não é doença. Mas, se fosse, não causaria nenhum espanto.

Ela é descrita como sentimento. Nostalgia e melancolia relativas à ausência lhe são atribuídas. Nada mais redutível, pobre e desestimulante. Não gosto desta versão que carrega apenas dor.

Prefiro a forma dos antigos alquimistas. Diziam eles que veneno e remédio estão no mesmo frasco. Assim pensando, esta “fórmula” traz um alento. Se vai “matando aos poucos”, também pode trazer a “cura”. Se de saudade se morre, pode-se ir, aos poucos, revivendo. Dado que “nela se encontra um importante remédio”, ele não poderia ser outro, senão o da vida.

Associar a saudade somente ao passado, soa quase como piada. Seria como querer mostrar a imagem total de um quebra cabeça de mil peças usando uma peça só. Nem pensar! Não dá conta do todo.

Saudade fala tanto do presente quanto de passado. É a própria história sendo estabelecida no agora. Ela tem começo e meio; nem sempre tem fim. Penso que a palavra saudade, por mascarar a profundidade da experiência, carregue um pouco de fraqueza e covardia. Fraca, no sentido de não dar conta de tudo o que faz sentir. Covarde, por não contemplar toda a intensidade dos sentimentos que carrega.

O tamanho da distância, nem sempre corresponde ao tamanho da dor. Há “longes” tão perto... Outros “perto” tão distantes...

A palavra saudade é sem tempero, sem cheiro, sem gosto. A saudade sentida tem.

Para mim, a saudade tem “status” de sagrada. Fala de coisas vindas da alma. Alimenta esperança e fé. Nela sempre há uma oração. Vários pedidos. Um grande desejo.

A prova de que a saudade é sagrada é o seu poder de driblar o tempo. Ignora o Cronos. Deixa-o sem nada entender. Cada dia riscado no calendário se desdobra em dois ou três...

Mas, voltando aos velhos alquimistas... se a saudade é remédio, é ela que devolve a vida. Tira mais cedo do sono, sabedora do que vai ver. Devolve a alegria. Decora a casa. Coloca tudo de volta em seu lugar. Põe flores nos vasos e capricha no tempero. Perfuma o quarto e arruma a cama.

Cada saudade tem um nome e uma história para contar. A minha, tem um desfecho:

Minha saudade se desfez, no instante que vi o brilho dos teus olhos.

Se despediu, no momento em que junto ao teu peito, me diluí no teu abraço.

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 28.01.2020)

COISAS DA VIDA


O atraso, logo na segunda-feira pela manhã, denunciava um dia atípico.

Reuni as coisas para passar o dia trabalhando no consultório. Saía pelo portão, quando lembrei que precisava levar um equipamento à assistência técnica. Ainda dispunha de uns dez minutinhos e não precisaria desviar meu trajeto. Resolvi aproveitar a oportunidade.

Trânsito tranquilo, sinaleira aberta, muitas vagas para estacionar. De dentro do carro, ainda tive tempo de ver a grade da loja sendo erguida. Tudo certo. Ao menos, parecia.

Ao entrar, já na porta, fui recebido com um tímido:

- Por favor, senhor, aguarde um minuto. Estamos inicializando o sistema.

Estranhei, mas dei um bom-dia e aguardei.

A impaciência que surgia me alertava de que os minutos de “gordura” dos quais eu gozava já não existiam mais. A mocinha que atendia, vendo que a coisa não andava e tentando ser atenciosa, começou a puxar assunto. Possivelmente, mais por tentar ganhar tempo do que por simpatia. Nada contra a menina. Ela transparecia não ser o tipo de pessoa que acorda cantando feito passarinho. Mas, sem saber, “acordaria” dentro de muito pouco tempo.

- O senhor está com muita pressa?

- Sim, tenho uma consulta agendada.

- Ah, médico?

- Não, psicólogo!

- Nossa, que legal. O senhor vai para a terapia? Eu também vou! Dois anos! Me ajuda muito, sabe?! Agora, estou indo duas vezes por semana. Meu psicólogo tem trabalhado comigo muitas questões. Estou revendo muitas coisas. Eu não gostava de terapia, sabe? Mas, aí, com o tempo a gente vai percebendo as coisas, entendendo, se transformando... Hoje o sistema está lento meeesmo... O meu psicólogo é o “Fulano de Tal”. Minha amiga que indicou. Ajudou muito ela. Em qual o senhor vai? Senhor, o sistema voltou. Qual é mesmo o seu nome?

Ainda sem entender o que se passava, respondo:

- Eu sou o “Fulano de Tal”. O seu psicólogo.

A mocinha “congela”. Em poucos segundos, suas bochechas estão completamente rosadas.

Em total silêncio, ela preenche minha ficha. Agradeço e sigo para o consultório, ainda pensando na situação inusitada.

No intervalo do meio-dia abro o aplicativo de mensagens. Percebo um número desconhecido, com a seguinte mensagem: “Aqui é a moça da assistência técnica. O senhor teria um horário para me atender ainda hoje? ”.

Como diria um amigo meu e também psicólogo: “Que me perdoem os bem-resolvidos..., mas, terapia é fundamental! ”.

A mocinha acabara de descobrir isto.

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 21.01.2020)

PERCEPÇÕES


Há dias, ela sentia algo estranho. Uma sensação ruim em relação ao trajeto que fazia de casa até a escola.

Algumas vezes, sentia que iria evolver-se em um acidente. Outras, chegava a ver a imagem de um caminhão projetando-se diretamente para cima do seu carro. Noutras tantas, se via perdida em pensamentos que sempre culminavam com a morte.

Passou duas semanas preocupada. Alimentando o medo. Nervosa.

Os dias foram passando, nada aconteceu.

Revelou que estava cansada de dedicar tempo a pensamentos que nunca se realizavam.

Perguntei se era sobre intuição que estávamos falando. Ela disse que, caso fosse, não confiaria mais nela. Cogitava tomar remédios para a “acalmar os pensamentos”.

Carl Jung, identificou quatro funções psíquicas fundamentais nos seres humanos. O pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição. As duas primeiras seriam racionais. As duas últimas, irracionais. Ou seja, estas irracionais se dão de forma inconsciente. Necessitam ser “traduzidas”. Elas “forçam” que nos perguntemos: “O que vou fazer com isto?”.

Então, todos carregam estas funções. Cada qual, com um nível de desenvolvimento peculiar. Logo, minha paciente se via frente ao incômodo gerado por uma função inconsciente. Há duas formas de lidarmos com a intuição.

A primeira é a mística. Ao entendê-la como “superpoder”, nos tornamos seus reféns. Ela aprisiona pela necessidade de sua interpretação. Quando assim entendida, pode ser nomeada de destino/deus/universo e, a estes, atribuídas as suas consequências.

A segunda, e que entendo ser totalmente diferente, é a psíquica. Esta, exige uma atitude de atenção e cuidado em relação aos fatos da vida. A percepção psíquica nos livra do aprisionamento à mística.

Temer a primeira é não sair de casa. É desviar o caminho. Respeitar a segunda é adquirir liberdade.

Há um enfrentamento necessário via consciência. Ser “sabedora” de um possível dano e enfrentá-lo, levou-a a dirigir com atenção. Ajudou-a a evitar as situações que, por ventura, desviassem sua atenção como: conversa, uso de celular, distração, excesso de velocidade.

Agora, ela vê sentido em aqueles pensamentos nunca terem se realizado. Seus temores foram se transformando em atitudes de cuidado. Não cedeu à mística, transformou-a em consciência.

Foi possível entender de que forma sua intuição surgia. Tornou-se aceitável compreender conscientemente os momentos em que se manifesta. Foi razoável fazer as pazes e seguir vivendo de forma digna com sua intuição sem entregar-se à medicação.

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 14.01.2020)

O ESPECIALISTA


Estávamos em visita na casa de familiares. Após o café da manhã, na TV, passava um programa de entrevistas.

A apresentadora falava sobre “geração Y”. Um especialista comentava o assunto. Foi quando a coisa toda chamou minha atenção. Entre muitas observações questionáveis, ele disse o seguinte: “...funciona assim por esta ser uma geração que não conhece a fome.”.

Minha primeira observação sobre aquele comentário é de que falhamos. Falhamos em olhar para o outro. Falhamos a cada vez que narramos o outro a partir da observação contaminada da nossa “bolha”. O especialista, da mesma forma que uma boa parte da humanidade, desconectou-se da ética do outro. Logo, também falhamos quando aceitamos este tipo “avaliação”.

É uma tendência, quase natural, que o ser humano se organize em grupos. Que afinidades tenham muito valor sobre estas escolhas. Mas quando foi que os cérebros se fecharam? Quando foi que nosso egoísmo transformou estas bolhas, nas quais vivemos, em virtuais realidades? Quando se tornaram a única forma de enxergar o mundo?

Julgar ou atribuir “verdades” a partir de uma ou outra realidade não confirmam nossa verdade sobre o outro. Denunciam um fracasso em relação a si.

A evolução financeira não aproximou o ser humano da sua tão discutível “humanidade”. A religiosa, tampouco. Oferecem muito pouco, além de um mínimo de conforto àqueles que lhes dobram os joelhos. Cedo ou tarde, esta ou aquela, tentam impor sobre o coletivo seu fanatismo, o convencimento e a condenação do que lhe parece diferente. Estas e outras: apenas bolhas!

O que resta, como esperança, então? Aposto na evolução do Ser a partir das suas próprias dores e dificuldades. Óbvio que, quando elaboradas através do trabalho da consciência.

Há tempos escrevo sobre o enfrentamento dos próprios dragões. É nesta batalha que há um recolher-se silencioso sobre o trabalho de si. O artesão precisa de alma sobre o seu fazer. Entre o martelo e a bigorna está o fruto do trabalho do ferreiro. Tudo o que produz como único, lhe acrescenta valor.

Este é o trabalho da alma. Trabalhar a Si, em silêncio. Nos recantos e labirintos do próprio ser.

Na diferença reside a especificidade de cada alma. Uns tem o dom para transformar o mundo. Mas todos, a difícil missão de evoluir a Si.

Precisamos, cada vez menos, de “especialistas de bolhas”. Toda real mudança parte de um trabalho sobre Si. Não há mais espaço para “generalismos”, quando se trata de seres humanos. Aliás, generalismo rima com charlatanismo.

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 07.01.2020)

CONEXÃO


O quanto temos de habilidade para ligar um ciclo a outro?

Na hora em que “a coisa aperta” é muito comum torcermos pelo final rápido. Há uma “natureza” que parece exigir lançar uma pá de cal sobre o que se encerra.

A brevidade anda meio que de braços dados com a insatisfação.

Começar outro, novo. Tudo do zero. Sem manchas. Roupa nova. Aquela folha de desenho branquinha, sem nenhum rabisco, sem marcas de borracha ou borrões.

De outra forma, basta o time estar ganhando de goleada para implorarmos que o tempo nunca se acabe. O último beijo, antes da despedida, sempre poderia ter alguns segundos a mais. O tempo, meus amigos, não é dado a afetos. Ele acaba.

Consumimos rápido demais, de forma abusivamente descontrolada. Exageramos em quase tudo. Até mesmo na afoiteza das nossas comemorações. Como se, no fundo, a alegria também fosse acabar. Ela acaba.

A mitologia grega conta sobre Cronos (o grande titã, que tudo devora). Não é de causar espanto que ele, justamente, represente o tempo. Cronos impede a vida. É o tempo no qual, fora dele, nada acontece. Um monstro egoísta, sedento por devorar a tudo e a todos. Ensimesmado, ignora qualquer conexão com o futuro.

Mas, felizmente, esta história não acaba aí. Ele é derrotado. Seu castigo é ver a liberdade do que havia devorado: seus seis filhos.

Héstia, a deusa da família, do calor do lar; Demeter, a soberana da agricultura; Hera, rainha das bodas e da maternidade; Hades, senhor do mundo inferior e dos mortos; Poseidon, deus dos mares e Zeus, o grande responsável pela ordem e consciência. Eles são a base da sociedade que surgiria.

Cronos temia o futuro. Temia perder seu poder. Talvez, esta seja uma lição sobre a transitoriedade. O futuro requer transformação pessoal. Do contrário, há apenas a morte, mascarada de eternidade.

Quando Cronos é derrotado precisa se deparar com o que tanto negou: sua falta de conexão, suas incertezas, sua deficiência de aceitação do diferente e do novo. Porém, já não há mais tempo. O gigante do tempo é devorado pelo seu próprio presente vazio e desconexo.

A única forma de são sucumbir ao tempo está na qualidade das conexões que mantemos.

Com o que nos conectamos? Estamos abertos às mudanças? O que temos necessidade de controlar?

Face à virada de ano, compartilho um pensamento do saudoso ator Mário Lago, que parece ter entendido de forma magnífica esta relação de conexão.

“Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Um dia a gente se encontra.”.

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 31.12.2019)

árvore de natal


Só tem valor aquilo que recebe investimento de Alma.

A linda flor à beiro do caminho. A foto guardada. A fé. Todas, sem exceção, são símbolos de uma relação.

Por ocasião do Natal, aqui em casa, um símbolo do qual não abrimos mão é a Árvore de Natal. Assim mesmo, com letra maiúscula. Ela carrega vida e, como tal, decorá-la em família sempre é especial.

O que eu não esperava era que, este ano, não estaríamos juntos. Separados por mais de dez mil e setecentos quilômetros, nosso símbolo, tal no jogo de xadrez, foi posto em “xeque”.

Chegamos a comentar que nosso Natal perderia a Graça. Mas o símbolo carrega a força de reascender a esperança. Dá vida, para quem o mantém.

Decidimos sustentar a nossa tradição. Montaríamos “juntos” nossa Árvore de Natal.

Para driblar o fuso horário e a distância, ligamos o aplicativo de chamada de vídeo. Iniciava nosso ritual.

Enquanto eu e minha esposa íamos decorando a Árvore, nosso filho se encarregava das músicas natalinas. Vez ou outra, mostrávamos uma bolinha e pedíamos para que ele escolhesse o lugar onde colocá-la. Assim, aos poucos, Ela foi ganhando vida e enchendo a casa de júbilo. Dançamos, ao embalo da sua voz e do seu violão. Não havia mais distância. Havia vida. Havia Natal.

Quando ouço pessoas criticando quem comemora o Natal, justificando ser esta “uma festa importada”, que “Jesus não nasceu em dezembro”, que “Papai Noel é uma criação de uma marca de refrigerante”, fico pensando: chatos !!

Todo chato se tornará um amargurado (se já não é), lançando sobre os outros o peso de suas frustrações e falta de vontade. Não se ataca “por nada”. O único motivo para não tolerar a alegria do outro é a própria frustração.

A alegria da vida pode estar num presente, num galho seco de árvore decorando com algodão ou bolinhas de papel. Pode estar em um velho vestido de vermelho; na manjedoura dos cristãos. O símbolo, pouco importa. O importante é que o principal sentido do Natal carregue VIDA. Aquela, simbolizada pelo nascimento do menino Jesus.

Natal só faz sentido no reconhecimento do outro. Então, não precisa muito. Só de um sorriso no rosto e alguns gestos de gentileza. Se isto for muito difícil, nesta noite de Natal, tenha ao menos um grandioso gesto de Amor: reascender a Esperança necessária à vida dentro de Si. É um bom começo!

Enquanto colocávamos o Anjo da Anunciação sobre a Árvore, nosso filho terminava uma canção. E ela revelava algo extremamente profundo: “Que seja feliz, quem souber o que é o Bem”.

Feliz Natal !

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 24.12.2019)

Sala de espera


Um local para mais de cem pessoas. Uma placa solicita silêncio. Outra, proíbe o uso do celular e aparelhos eletrônicos. Parecem de nada servir.

A senhora, sentada de frente às placas, a pleno volume, assiste ao vídeo de um homem falando sobre a reforma da previdência. Do canto da sala, é possível ouvir perfeitamente. Fala somente sobre vantagens.
Ela move a cabeça afirmativamente.

Faz lembrar de um antigo programa de auditório no qual uma criança, de dentro de uma cabine hermeticamente fechada, deveria responder sim ou não ao apresentador. Este, propôs a troca de uma bicicleta ou um algo de valor por uma chupeta usada. A criança, “surdamente”, respondeu “siiimm”.

O rapaz de terno e gravata fala alto ao celular, enquanto digita freneticamente no notebook. Parece não ter tempo para se preocupar com quem realmente deve acompanhar.

A sala de espera do hospital é um local de pluralidades. Gente de todo o tipo. Entra e sai, a todo momento. Mas, também, um lugar de fortes emoções.

O casal, próximo da janela, permanece em um silêncio assustador. Enquanto aguardam pela filha, parecem buscar esperanças no abraço e no olhar um do outro. Comovem a quem tem um mísero segundo para observar.

O moço do celular, algumas horas depois, pôde ser visto chorando junto a um grupo de pessoas.

É possível diferenciar quem, dentro de pouco tempo, estará do outro lado da porta. Os pacientes usam uma pulseira e logo são chamados. Quem fica “do lado de cá” precisa ser tão “paciente” quanto os “do lado de lá”. Resta lidar com o tempo. Ninguém sabe o que se passa do outro lado.

Enquanto isto, a senhora da “fronteira”, que aguarda pelo término da cirurgia do marido, aproveita para puxar conversa com uma das poucas pessoas que não estão entretidas com o celular.

Um lugar de tensão. De onde se entra e sai, sempre às pressas. Aqui, o tempo se deforma. Segundos levam minutos e facilmente se transformam em horas.

Pessoas que nunca se viram se tornam a melhor companhia. Trocam informações, dão aquela “reparada” na sacola do outro. Sugerem uma caminhada para “esticar” as pernas. Histórias que se comparam e se misturam, até que sejam instantaneamente separadas pela atendente chamando pelo “familiar do fulano”.

Talvez, a angústia seja um dos sentimentos mais difíceis de se lidar aqui neste lugar. Nada é exato. Só há esperança e espera.

Do outro lado da porta, um amigo, um parente, um grande amor. No final, seja de qual lado da porta se está, o que mais se espera é um “Está tudo bem”.

Paz e bem!

- Márcio Hoffmeister (Publicado originalmente no Jornal Ibiá, 10.09.2019)